A confusão Neoliberal

Rodrigo Moses A. Plácido
20 min readJul 14, 2021

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O conceito é o alicerce de qualquer forma de abstração da realidade. Uma ideia mal conceituada é problemática, pois não sendo bem delimitada, pode ser atribuída à tudo, quando explica nada. O conceito de Neoliberalismo — devido a sua imprecisão — partilha substancialmente desta confusão.

Este mal-entendido pode ser facilmente esclarecido através da contraposição das diferentes formas de interpretação e fundamentação do conceito; ora buscado em sua origem — sendo vago, devido ao seu abandono pelos liberais — , ora analisado sob uma pretensão crítica — denotando um aspecto quase sempre pejorativo.

Quando em contraste, as diferentes perspectivas se diferenciam, tornando possível proceder com uma linha investigativa, cujo resultado proporciona o entendimento de cada abordagem de maneira isolada.

I — Liberalismo como Fenômeno Histórico

Antes de aprofundar com o assunto tratado no texto, cabe entender que o Liberalismo — interpretado como espectro — é composto por várias correntes. Cada corrente enfatiza aspectos próprios, em função do contexto social e político em que surgiram.

“Nietzsche disse que apenas seres a-históricos permitem uma definição no verdadeiro sentido da palavra. Assim, o liberalismo, um fenômeno histórico com muitos aspectos, dificilmente pode ser definido. Tendo ele próprio moldado grande parte do nosso mundo moderno, o liberalismo reflete a diversidade da história moderna, a mais antiga e a recente” — Merquior, José Guilherme; Liberalismo: Antigo e Moderno

Por exemplo, o Liberalismo Clássico, produto das Revoluções Liberais, contra os abusos das monarquias absolutistas, enfatiza a limitação do poder dos monarcas — ou do Estado, em sentido amplo — como principal aspecto a ser perseguido. A comparação com a Grã-Bretanha do século XVIII convenceu muitos protoliberais (partidários do iluminismo) de que o governo deveria atuar minimamente, zelando apenas pela paz e segurança.

Devido ao espírito de extrema repulsa pela discricionariedade do poder dos monarcas, tanto a limitação da autoridade estatal quanto a sua divisão — mitigando a concentração do poder em uma personalidade única através da sua distribuição — edificou o ceticismo legítimo em relação a qualquer intromissão do Estado em esferas próprias da vida particular.

Um opositor fervoroso do Liberalismo, Carl Schmitt — jurista alemão controverso, membro do partido Nazista, mas responsável pelo entendimento do conceito de Constituição como a decisão política fundamental — , resumiu a Constituição Liberal em dois princípios: a esfera da liberdade individual é em princípio ilimitada, e a possibilidade de atuação do Estado nessa esfera é em princípio limitada.

Apesar de ser um crítico da teoria liberal, a interpretação de Schmitt dos pilares do liberalismo político é fidedigna; mostra que o liberalismo é historicamente interpretado como conjunto de teorias céticas em relação à concentração de poder do Estado, devendo este ser limitado por um constitucionalismo de vias democráticas.

A consolidação do constitucionalismo, seguindo os princípios de limitação e balanceamento dos poderes da entidade estatal, propiciou a ascensão da justiça social dentro dos debates entre os intelectuais liberais do século XIX. A amplitude do poder de atuação do Estado estava controlada, mas os problemas sociais do industrialismo tardio persistiam. A busca pela justiça social passou a ter um maior peso nas discussões nos círculos intelectuais liberais.

“Segundo Albert Dicey (1835–1922), o jurista liberal que escreveu o clássico The Law of the Constitution, a reforma legal na Inglaterra conheceu duas fases durante o século XIX. De 1825 a 1870, seu objetivo foi primariamente ampliar a independência individual. Desde então, visou à justiça social. Dicey, um liberal conservador, amigo de sir Henry Maine, deplorou o salto do laissez-faire para o “coletivismo”. Outros partilharam o seu relato do salto sem endossar a avaliação que fez dele. Eram os “novos liberais” de 1880, convictos de que o “individualismo mais velho” já não era válido no contexto social do industrialismo tardio. Começaram o que um deles, o francês Charles Montague (1858–1935), chamou de “revolta contra a liberdade negativa” — a noção ainda tão central no liberalismo libertário de Mill.” — Merquior, José Guilherme; Liberalismo: Antigo e Moderno

Em meio a efervescência desses novos ideais — e a mutação da própria teoria liberal — que surge o Liberalismo Social, também entendido como Novo Liberalismo. O conceito de liberdade foi ampliado pelos seus defensores. Antes entendia-se que o indivíduo era mais livre quanto menor a intervenção do Estado sobre as suas ações individuais. Entretanto, para os liberais-sociais isto não era o suficiente.

Para os novos liberais, a liberdade é um equilíbrio complexo entre a limitação da atuação do estado e a possibilidade de auto realização do indivíduo que a exerce. Nasce, portanto, a dicotomia entre liberdade negativa e liberdade positiva. Este conflito torna-se o motor da evolução do pensamento liberal; de modo que, em cada período histórico, algum deles adquire maior importância.

I I— O “Neoliberalismo” Enquanto Palavra

Antes de prosseguir, cabe ressaltar um ponto de extrema importância que, se não abordado com a devida cautela, pode levar a conclusões equivocadas. Desse modo, é preciso compreender a contraposição do Novo Liberalismo com o Neoliberalismo — em certos períodos históricos são tidos como sinônimos e em outros como antagônicos. Isto ficará mais claro ao longo do texto.

A primeira aparição do que foi compreendido como neoliberal, no sentido da formação da palavra — não necessariamente o que ela de fato significa — foi usada de maneira não sistemática em alguns livros de Ludwig Von Mises. Por exemplo, em Liberalismo (1927):

“Nowhere is the difference between the reasoning of the older liberalism and that of neoliberalism clearer and easier to demonstrate than in their treatment of the problems of equality”

Na tradução para o Português:

“Em nenhum ponto fica mais claro e mais fácil demonstrar a diferença entre o raciocínio do velho liberalismo e o do neoliberalismo do que no tratamento do problema da igualdade”

Contudo, na edição original alemã, o termo aparece um pouco diferente:

“Nirgends ist untershied,der in der argumentation zwischen dem älteren Liberalismus und dem neuen Liberalismus besteht, karer und leichter auzfzuweisen alsbeim problem der gleichheit”

Ou seja, a tradução do que Mises aborda como “neuen Liberalismu”, em seus textos, seria melhor colocada como Novo Liberalismo e não neoliberalismo. Aliás, Von Mises — ao longo do texto — não endossa o novo liberalismo. Muito pelo contrário.

“En la cita de Liberalismo resulta del contexto que por neuen Liberalismus se refiere a los socialistas que se hacen pasar por liberales, mientras que por älteren Liberalismus se refiere a los que llamaríamos liberales clásicos. Teniendo en cuenta que, como dijéramos, el libro es de 1927, este uso es concordante con lo que en textos posteriores von Mises llamaría pseudo liberales” ( El mito del Neoliberalismo, Cato Insitute)

Desse modo, a primeira aparição do termo Novo Liberalismo/Neoliberalismo não é como fundamentação de uma nova corrente do liberalismo. O significado colocado por Mises também difere em dois momentos. Em seu livro “O Socialismo”, o novo liberalismo é entendido como a corrente liberal que se adequou a teoria subjetiva do valor. Já em outro livro, “O Liberalismo”, Mises atribui o sentido de “socialistas disfarçados”.

De maneira geral, a crítica de Mises aos Novos Liberalismos é baseada num certo tipo de conservadorismo liberal. De modo que a liberdade negativa, até então um principio canônico da doutrina liberal, ao ser questionada, possibilitaria a interferência irrestrita do poder do Estado sobre a individualidade.

A obra de Mises segue um tendência conservadora de imutabilidade do que deve ser considerado liberalismo. Apesar da minha discordância em relação a fatalidade misesiana, entendo o seu conservadorismo como importante dentro de uma dialética da evolução teórica liberal — o que leva a um reexame cuidadoso e mais preciso da doutrina liberal.

“E o que dizer quanto a suas opiniões a respeito do Estado? O liberalismo clássico fizera recair o peso da justificação sobre a interferência estatal. Normalmente, o Estado devia deixar que a cidadania livremente tratasse de seus negócios. Sua interferência só era legítima em benefício da segurança individual, como uma garantia da livre determinação pela sociedade da maior felicidade para o maior número. Green não era tão minimalista. A função do Estado, ensinou, devia consistir na “remoção de obstáculos” ao autodesenvolvimento humano. Isso era também uma ideia alemã, decorrente de Humboldt. O Estado nunca se podia pôr no lugar do esforço humano para a Bildung, ou cultura pessoal, mas podia e devia “promover condições favoráveis à vida moral”. — Merquior, José Guilherme; Liberalismo: Antigo e Moderno

V — O Neoliberalismo/Ordoliberalismo sistematizado de Alexander Rustow

Alexander Rustow foi um economista e sociólogo alemão, tido com responsável pela primeira sistematização do conceito “neoliberal”, como forma de discurso político e econômico. Em 1932, Rustow foi convidado para participar da conferência anual da Verein für Socialpolitik — a principal associação econômica da Alemanha. Rustow fez um discurso polêmico, contrariando o discurso nazista em ascensão, intitulado: “Economia Livre, Estado Forte” (Freie Wirtschaft, Starker Staat).

O discurso de Rustow evidenciou:

“[…] a clara rejeição de um Estado que se envolve com processos econômicos. Rüstow queria ver um estado que estabelecesse as regras para o comportamento dos agentes econômico e sua fiscalização — através de um sistema jurídico bem estruturado. Um papel limitado e muito bem definido para o Estado, mas que exige um estado forte. Além dessa tarefa o Estado deve abster-se de se envolver demais nos mercados. Isso significava um claro “não” ao protecionismo, subsídios, cartéis, ou o que hoje chamamos de capitalismo de compadrio, captura regulatória, ou corporativismo. No entanto, Rüstow também viu um papel para um intervencionismo limitado, desde que na direção das leis do mercado”. (Fonte: O espantalho chamado neoliberalismo)

O liberalismo de Rustow divergia do laissez-faire defendido por muitos liberais clássicos — como Bastiat e outros. Pensadores que propagavam uma latente estadofobia nos círculos de discussões liberais. De fato, o economista alemão buscou uma terceira via entre o intervencionismo de direita (fascismo e nazismo) e o de esquerda (comunismo ou socialismo).

O neoliberalismo alemão abrange o “ordoliberalismo” econômico-legal da Escola de Freiburg e a Economia Social de Mercado (ESM), que passou a ser associada às políticas econômicas de Ludwig Erhard, arquiteto do Wirtschaftswunder da Alemanha no pós-guerra (milagre econômico). Como explica o Dr. Hartwich, essas linhas de pensamento surgiram como uma resposta aos erros históricos da Alemanha: o antiliberalismo no final do século XIX, a cartelização durante os anos de guerra, a versão de Hitler da economia de comando que foi reforçada pelos nazistas, e a guerra. (Fonte: O espantalho chamado neoliberalismo)

III — A fundamentação teórica do Neoliberalismo como sinônimo do Novo Liberalismo

Em agosto de 1938, um grupo proeminente de intelectuais liberais se reuniu, através de uma iniciativa de Walter Lippmann — que havia lançado a tradução francesa de seu último livro “The Good Society” — , com objetivo de discutir os novos rumos do liberalismo num contexto europeu do pós segunda guerra. Participaram do encontro: J. B. Condliffe, A. Detoeuf, F. A. Hayek, M. A. Heilperill, E. Mantoux, L. Marlio, L. von Mises, M. Polanyi, S. Possony, W. Ropke, J. Reuff, A. Rustow.

O registro das discussões ocorridas durante o encontro foi feito posteriormente por Louis Baudin, em seu livro “L”aube dun Nouveau Libéralisme” (A Aurora de um Novo Liberalismo, em português):

“Le moment était venu de grouper ces forces dispersées. Uncolloque eut lieu à Paris en août 1938 sous -la présidence de Walter Lippmann qui venait de faire paraître la traductionfrançaise de son ouvrage The Good Society 2. Y prirent partactivement des économistes réputés tels que J. B. Condliffe, A. Detoeuf, F. A. Hayek, M. A. Heilperill, E. Mantoux, L. Marlio, L. von Mises, M. Polanyi, S. Possony, W. Ropke, J. Reuff, A. Rustow” — Baudin, Louis; L”aube dun Nouveau Libéralisme” (A Aurora de um Novo Liberalismo, em português)

De maneira geral, como o próprio título da obra orienta, Baudin trata justamente do surgimento de uma nova corrente liberal, mas — ao contrário de novo liberalismo definido por Mises — , surge de maneira fundamentada, como resposta ao declínio do das ideias liberais e do socialismo observados na cultura europeia durante a primeira metade do século XX.

“Quando falamos do declínio do socialismo, não podemos ser acusados de exagero, uma vez que os socialistas o reconhecem. Mas também admitimos que o liberalismo perdeu suas antigas posições. As duas doutrinas, portanto, avançam uns para os outros e se encontram nas fronteiras. Uma reconciliação está à vista, isso poderia levar a um acordo? Já novas fórmulas indicam a existência de possibilidades: o “Liberalismo social” de L. Marlio 1, “socialismo liberal” de Jacquier e Bruère 2, o “socialismo liberal” de C. Roselli 3, o “socialismo individualista” de R. E. Lacombe 4. O título do trabalho recente e importante de G. Lasserre é muito característico a este respeito: Socialize em liberdade” — Baudin, Louis; L”aube dun Nouveau Libéralisme”

O que difere a abordagem de Baudin em relação ao de outros intelectuais liberais é justamente a sua visão do surgimento do Novo Liberalismo/Neoliberalismo, não como uma fatalidade, mas como fruto de um exame de consciência feito por pensadores sociais e liberais clássicos. Isto fica claro quando Baudin coloca a possibilidade de acordo entre as duas doutrinas.

Porém, Baudin compreende a preocupação de Ludwig Von Mises em relação aos “socialistas cobertos” — o que Baudin coloca como oportunistas. Mas, diferente de Mises, Baudin reconhece a honestidade intelectual dos partidários do pensamento social, que buscam reexaminar suas teses.

No entanto, é bom encontrar um meio-termo, edificando uma doutrina útil nesta relação de fronteira. Um socialismo mais brando e um liberalismo mais flexível, ambos em amor pela liberdade e, como ponto em comum, o desejo para salvar a personalidade humana . Planejamento, sim, talvez, mas então “planejamento pela liberdade” — Baudin, Louis; L”aube dun Nouveau Libéralisme”

Desse modo, apesar da grande variedade de opiniões nas discussões do Colóquio de Walter Lippmann, o que contribui com uma ampla e produtiva discussão de ideias — revelando as diferenças, mas não impossibilitando o estabelecimento de objetivos comuns — foi formalizada uma agenda com princípios do que se formou o Neoliberalismo/Novo liberalismo.

A certidão de nascimento do neoliberalismo é uma agenda que
inclui quatro pontos essenciais:

A certidão de nascimento do neoliberalismo possui uma agenda que engloba quatro pontos essenciais:

1º O Novo liberalismo admite que somente o mecanismo de preços, em sua forma livre, permite proporcionar uma solução ótima dos meios de produção, que levará a uma máxima satisfação dos desejos humanos.

2º O Estado é responsável para determinar o regime jurídico, que sirva como quadro para o livre desenvolvimento econômico.

3º Outros fins sociais podem substituir os objetivos econômicos acima mencionados.

4º Uma parte da renda nacional pode ser, para este propósito, retirada da renda de consumo das pessoas, desde que a transferência seja transparente e consentida de maneira consciente.

Esse quatro pontos, portanto, relacionam-se respectivamente com a pedra de orientação do sistema (neoliberal), sua estrutura, seus objetivos e meios de aplicação. — (Tradução própria do texto acima)

O princípios estabelecidos na agenda de temas específicos: o mecanismo de preços como orientação para o estabelecimento de uma relação de consumo e produção que otimize o bem-estar geral da sociedade; a responsabilidade do Estado em determinar o regime jurídico adequado ao livre desenvolvimento econômico; adequar a escolha pública entre os fins sociais da sociedade e o desenvolvimento econômico; e, para fundamentar a escolha acima, o destino de uma parte da receita nacional deve ser feito de maneira transparente e consciente.

O princípio que chama mais atenção na agenda é justamente o que difere o Neoliberalismo/Novo Liberalismo do Liberalismo Clássico: o entendimento da atuação do Estado como legítima para instituir políticas sociais. Ou seja, a compreensão da validade das liberdades positivas como pilar do Novo Liberalismo.

Porém, a análise de Baudin não se limita apenas ao estabelecimento da agenda, mas também a discussão de cada ponto de maneira isolada. Desse modo, o Estado atuante é visto com certo ceticismo por ele, mas que o liberalismo deve se adequar ao espírito da sociedade na qual os seus pressupostos estão sendo aplicados.

A construção da estrutura de que estamos falando é o trabalho de juristas. A dificuldade que isso envolve está na antinomia que existe entre na necessária permanência do direito destinado a garantir segurança de longo prazo para as pessoas e a não menos necessária a adaptação aos fatos em constante mudança. Sim, a cristalização da lei é perigosa, sua plasticidade também é. A sabedoria parece comandar uma evolução lenta e progressiva. — Baudin, Louis; L”aube dun Nouveau Libéralisme”

O Neoliberalismo de Baudin — ou propriamente do Colóquio de Walter Lippmann — é pragmático e entende a necessidade de adequação dos princípios da doutrina liberal aos novos tempos. Antes de condenar a atuação do Estado de maneira inconsciente, deve-se examinar a realidade das consequências, não só econômicas, mas políticas e sociais. Desse modo, a ciência econômica — aliás, as ciências sociais em geral — deve orientar o liberalismo econômico, não o oposto.

IV — O “Neoliberalismo” do pós Segunda-Guerra, “A Sociedade de Mont Pellerin” e o abandono do termo Neoliberal

De maneira geral, o neoliberalismo pode ser analisado em dois períodos de tempo, que, apesar de próximos, possuem diferenças fundamentais de ordem sociopolíticas. O neoliberalismo do colóquio de Walter Lippmann não é o mesmo da Monty Pellerin Society — apesar de membros comuns as duas instituições. O debate entre a esquerda liberal de Baudin e Alexander Rustow foi vencido pela direita liberal de Friedman, Von Mises e Hayek.

Mas o que é a Mont Pellerin Society?

Apesar de ser uma associação antiga, criada em 1947 por iniciativa de Friedrich Von Hayek, a Sociedade de Mont Pellerin permanece atuante; de modo que, por exemplo, o atual ministro da economia — Paulo Guedes — participou de um encontro organizado por ela em 2020. Atualmente, a instituição administra um domínio eletrônico, no qual consta algumas informações sobre a sua história e o liberalismo que defende.

Desse modo, o manifesto da Mont Pellerin Society se entende como:

Um grupo de economistas, historiadores, filósofos e outros estudantes de relações públicas da Europa e dos Estados Unidos se reuniu em Mont Pelerin, Suíça, de 1º a 10 de abril de 1947, para discutir a crise de nossos tempos. Este grupo, desejoso de perpetuar a sua existência, promovendo relações e a colaboração de pessoas com ideias semelhantes, concordou com a seguinte declaração de objetivos. (Fonte: montpelerin.org)

Sob o contexto do pós Segunda-Guerra, o Comunismo Soviético se firmou como alternativa ao capitalismo orientado por princípios liberais. A Mont Pellerin Society surge em meio a crescente polarização geopolítica mundial, com objetivo de — sobre tudo — :“facilitar a troca de pontos de vista entre mentes inspiradas por certos ideais e concepções amplas em comum, contribuir para a preservação e o aprimoramento da sociedade livre”.

Porém, apesar da Sociedade de Mont Pellerin se propor como facilitadora da troca de ideias — que contribuam para o estabelecimento de uma sociedade livre — as discussões nas reuniões tomaram rumos claramente conservadores; de modo que a atuação dos seus membros se orientou para a preservação de princípios estabelecidos e não a proposição de alternativas.

Desse modo, liberais mais de esquerda, como Rustow, se afastaram dos centros de discussões. A auto denominação neoliberal — por parte dos membros da Mont Pellerin Society — entrou em desuso. Os seus membros passaram a se autoidentificar como liberais clássicos.

Ao contrário do Colóquio Walter Lippmann, no entanto, houve muito menos unidade entre os participantes. A reunião se tornou um clube de debate para indivíduos de todo o espectro liberal discutirem a sua visão liberal, em vez de apenas um grupo intelectual neoliberal. Eles tiveram muito poucos pontos de concordância. O grupo se tornaria conhecido como Sociedade de Mont Pèlerin (SMP) apenas porque os participantes não puderam concordar em um indivíduo ou valor para dar o nome à organização. (Fonte: Como os neoliberais modernos redescobriram o neoliberalismo)

V — A aurora do “Neoliberalismo” Conservador

Um exemplo clássico de abandono do termo Neoliberal é atrelado ao economista Milton Friedman. Friedman participou, tanto do Colóquio de Walter Lippmann, quanto das reuniões da Mont Pellerin Society; a sua mudança de pensamento fica clara em dois momentos.

Em seu artigo “Neoliberalism and Its Prospects”, Friedman tem uma visão muito mais progressista em relação a atuação do Estado; de maneira congruente ao que foi exposto por Baudin, sobre as discussões que aconteceram no Colóquio de Walter Lippmann.

O seu posicionamento fica claro no seguinte trecho:

A crença coletivista na capacidade de ação direta do Estado para remediar todos os males é ela mesma, no entanto, uma reação compreensível a um erro básico na filosofia individualista do século XIX. Essa filosofia quase não atribuía papel ao Estado, exceto a manutenção da ordem e a execução de contratos. Era uma filosofia negativa. O Estado só poderia causar danos. Laissez faire deveria ser a regra. Ao tomar esta posição, subestimou o perigo de que indivíduos poderiam, por meio de acordos e combinações, usurpar o poder e limitar efetivamente a liberdade de outros indivíduos; não conseguiu ver que havia algumas funções que o sistema de preços não poderia executar e que, a menos que essas outras funções fossem de alguma forma previstas, o sistema de preços não poderia cumprir com eficácia as tarefas para as quais está admiravelmente equipado. (Fonte: Neoliberalismo e seus prospectos — por Milton Friedman; tradução neoliberais.com)

Pode-se perceber que, neste artigo, Friedman reconhece os erros do Liberalismo Clássico — principalmente a defesa dogmática do Laissez-faire. Mas o autor não para por aí:

Uma nova fé deve evitar ambos os erros. Deve dar lugar a uma limitação severa no poder do Estado de interferir nas atividades detalhadas dos indivíduos; ao mesmo tempo, deve explicitamente reconhecer que existem funções positivas importantes que devem ser desempenhadas pelo Estado. A doutrina às vezes chamada de neoliberalismo, que tem se desenvolvido mais ou menos simultaneamente em muitas partes do mundo e que nos EUA está associada particularmente ao nome de Henry Simons, é essa fé. Ninguém pode dizer que essa doutrina triunfará. Alguém poderia dizer apenas que ela é de muitas maneiras idealmente adequada para preencher o vácuo que me parece estar desenvolvendo-se nas crenças das classes intelectuais em todo o mundo.(Fonte: Neoliberalismo e seus prospectos — por Milton Friedman; tradução neoliberais.com)

Milton Friedman, em sua visão sobre liberalismo, possuía uma forte tendência em aceitar a premissa abraçada pelo neoliberalismo — no sentido exposto por Rustow e outros intelectuais que participaram do colóquio de Walter Lippmann. Contudo, talvez pela polarização geopolítica da época, que influenciou as discussões na Sociedade de Mont Pellerin e ditou os rumos da doutrina liberal, Friedman mudou de opinião.

Em “Capitalismo e Liberdade”, a dualidade na defesa de um liberalismo necessariamente conservador e a necessidade de firmar o conceito “Liberal” associado ao sentido empregado durante o século XIX — com um relativo avanço quanto a atuação do Estado — , denota a mudança drástica no pensamento de Friedman.

Devido à corrupção do termo liberalismo, os pontos de vista que eram por ele representados anteriormente são agora considerados frequentemente conservadorismo. Mas não se trata aqui de uma alternativa satisfatória. O liberal do século XIX era um radical — no sentido etimológico de ir às raízes das questões, e no sentido político de ser favorável a alterações profundas nas instituições sociais. Assim, pois, deve ser o seu herdeiro moderno. Além disso, na prática, o termo conservadorismo acabou por designar um número tão grande de pontos de vista — e pontos de vista tão incompatíveis um com o outro — que, muito provavelmente, acabaremos por assistir ao nascimento de designações do tipo liberal-conservadorismo e aristocrático-conservadorismo. Devido em parte à minha relutância em ceder o termo aos proponentes de medidas que destruiriam a liberdade e, em parte, porque não fui capaz de encontrar uma alternativa melhor, tentarei solucionar essas dificuldades usando o termo liberalismo em seu sentido original — como o de doutrinas que dizem respeito ao homem livre. (Fonte: Capitalismo e Liberdade — Milton Friedman)

A leitura do livro deixa claro o ceticismo de Friedman em relação a atuação do Estado na Economia, bem diferente do que foi refletido por ele em “Neoliberalism and its prospects”. Como ele próprio argumenta, os atuais Liberais Clássicos são chamados de conservadores — algo que ele observa como pejorativo —, possivelmente pelos Novos Liberais que surgiram a partir de 1930. Neste momento, o Neoliberalismo adquire uma nova conotação, como uma retomada dos princípios do liberalismo clássico: nas palavras de Merquior, Neoliberismo.

Em se tratando especificamente de Friedman, Merquior observa:

Em Capitalismo e Liberdade (1962), Friedman argumentou que, dispersando-se o poder, o jogo do mercado equilibra concentrações de poder político. Ora, o Estado liberista evita por definição toda tendência de se colocar o poder econômico nas mãos políticas do Estado. A lição é clara: o liberismo pode não ser uma condição suficiente, mas é certamente uma condição necessária de liberdade global tal é a mensagem do grande expoente de Chicago.

Eu discordo um pouco da interpretação de Merquior, pois — na minha visão — , apesar de Friedman argumentar que a liberdade econômica não é condição suficiente para a liberdade global, ele propõe soluções extremamente conservadores (que nada diferiam do que já acontecia) de atuação do Estado.

Em se tratando especificamente de Hayek, Merquior observa:

Hayek é o maior defensor do liberismo entre os neoliberais pós-Keynes. Sua
crítica contundente dos sonhos igualitários e seu repúdio quixotesco à
democracia majoritária (substituída por uma versão condicionada, “demarquia”) são tidos geralmente na conta de fatores que o colocam na companhia de liberais conservadores.

A visão do Neoliberalismo da década de 80 em diante, entendido como conceito pejorativo pelos seus críticos, é fundamentada nesse sentido conservador; como uma retomada aos princípios antiquados do liberalismo clássico, rejeitando qualquer avanço em questões socioeconômicas — com bases científicas — por receio do aumento do poder do Estado.

VI — Conclusão: A confusão Neoliberal propriamente dita

Como observado ao longo do texto, o neoliberalismo — entendido como doutrina que buscava se fundamentar como terceira via entre o laissez-faire e o intervencionismo estatal — , ou seja, como teoria neoliberal discutida entre neoliberais auto identificados, perdeu a sua força em meio ao liberismo de Hayek, Mises e Friedman.

A defesa das liberdades negativas se sobrepôs à busca pelas liberdades positivas — pilar extremamente caro aos Novos Liberais. Apesar do abandono pelos então maiores expoentes do liberismo, os críticos do pensamento liberal— de maneira extremamente tosca — fizeram questão de associar as visões liberistas como representantes do conceito neoliberal: que, agora sim, foi deturpado.

Vemos muitos citando o termo neoliberalismo, quase que invariavelmente de forma pejorativa, mas percebe-se que os usuários desta palavra por vezes sequer sabem do que se trata, desconhecem seus conceitos e histórico, mas gostam de usá-lo como espantalho nas suas composições de cunho político-ideológico. […]Esse comportamento é tão tosco quanto chamar qualquer movimento progressista, ou de interesse da sociedade, de socialismo ou comunismo. Em outras palavras, os que acham que mostram conhecimentos usando espantalhos, na verdade só estão passando vergonha. (Fonte: O espantalho chamado neoliberalismo; neoliberais.com)

O Neoliberalismo, sob uma visão crítica e bem superficial — para não dizer burra — , é fortemente representada por David Harvey, em seu livro “A brief history of neoliberalism”. O título é, em certo ponto, fidedigno ao conteúdo; pois Harvey parte de um pressuposto de que o “Neoliberalismo” são as políticas econômicas ocorridas após os anos 70, que foram influenciadas pelo pensamento liberista difundidos por Hayek e Friedman.

Mas, assim como grande parte dos críticos da teoria liberal:

Harvey é um teórico extremo do conflito. A história que ele quer contar é a história de pessoas más destruindo o paraíso do “liberalismo integrado” para encher seus próprios bolsos e esmagar seus oponentes. Nos seus melhores momentos, Harvey trata isso como uma tese a ser defendida: o liberalismo integrado mudou para o neoliberalismo não por questões relevantes de política econômica, mas porque os ricos forçaram a mudança para “reafirmar seu poder de classe”. Nos piores momentos Harvey se esquece de argumentar, sentindo tudo tão profundamente em seu interior que chega a ter dificuldade em acreditar que alguém realmente poderia discordar. Quando ele está assim, ele não analisa nada da economia muito profundamente; claro, pessoas ricas disseram blablabla econômico, para justificar sua trama para empobrecer as classes trabalhadoras, mas nós não acreditamos nelas e não temos a obrigação de analisar exatamente de que coisas econômicas estavam falando.(Fonte: neoliberais.com)

De todo modo, a visão limitada sobre o que é neoliberalismo não se restringe apenas ao seus críticos. Grande parte dos liberais da atualidade negam completamente a existência do termo, ou acusam aqueles que defendem um determinado protagonismo do Estado em setores específicos — como políticas públicas e regulações setoriais — , de antiliberais e socialistas.

O conceito é o alicerce de qualquer forma de abstração da realidade. Uma ideia mal conceituada é problemática, pois não sendo bem delimitada, pode ser atribuída à tudo, quando explica nada. O conceito de Neoliberalismo — devido a sua imprecisão — partilha substancialmente desta confusão.

Desse modo, a mal conceituação do Neoliberalismo se dá, tanto por ignorância em relação a sua origem — incluindo críticos liberais e antiliberais — , como por falta de honestidade intelectual: contribuindo para a sua imprecisão.

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Rodrigo Moses A. Plácido

Estudante de Economia — UnB | membro Aliança pela Liberdade | Poeta de Computador